7.30.2009

Ler devia ser proibido.Guiomar de Grammon

Apensar fundo na questão eu diria que ler deveria ser proibido.
Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo horrível e ordinário em que fora colocado no corpo social.
Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madame Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras que jamais existiram meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo.
Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em maluquices sobre bailes e amores.
Ler realmente não faz bem.
A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, colocado a crer que tudo pode ser de outra forma, afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável, sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos algemas que o prendem.
Sem a leitura, ainda, estaria mais acostumado à realidade cotidiana, se dedicaria mais ao trabalho, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.
Sem ler, o homem jamais saberia os limites do prazer.
Não experimentaria nunca o maior Bem de Aristóteles: o conhecer.
Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem ser longos.
Ler pode gerar a invenção.
Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é indicado.
Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia, nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal.
Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um pouco de pó em movimento. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas, é preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.
Não, não dêem mais livros às escolas, pais, não leiam para os seus filhos, pode levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente.
Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, pode estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.
Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verdade.
Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas disputas, a por sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.
O mundo já vai por um bom caminho,cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais etc. Observem as filas, um dos pequenos tumores da civilização atual. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo.
Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, e prisões muito menos. O que é mais que tenta mudar a política,sendo contra autoridades do que a leitura?É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio das casinhas pequenas... Ler deve ser coisa rara, não para qualquer um.Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos.
Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da obediência. Para executar ordens, a palavra é inútil, além disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos... A leitura é terrível. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio.
A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano.


Texto:Guiomar de Grammon
Adaptação:Michele Vitória

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